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A buzina virou xingamento. E isso diz muito sobre nós.

Se você acha normal buzinar para extravasar sua raiva no trânsito, talvez esteja ajudando a espalhar a cultura da intolerância. Neste artigo, uma provocação sobre impulsos, convivência e a responsabilidade de quem quer um mundo menos agressivo.

Outro dia, parado no trânsito, fui surpreendido por uma sequência insistente de buzinas. Nenhum acidente, nenhum carro quebrado. O motivo? Alguém demorou dois segundos a mais para arrancar quando o sinal abriu. A buzina, que deveria servir como alerta para evitar acidentes, virou uma forma ruidosa de impaciência. Um xingamento em forma de som. E isso diz muito mais sobre nós do que sobre o trânsito.


O Código de Trânsito Brasileiro é claro: a buzina deve ser usada apenas em situações que envolvam risco ou para alertar outros condutores de forma preventiva. Mas, na prática, ela tem sido usada como instrumento emocional — uma espécie de desabafo disfarçado, que não melhora o fluxo, não resolve o problema e, muitas vezes, piora o clima. Ao acionar a buzina, a intenção raramente é proteger; quase sempre é punir, pressionar, hostilizar. É uma reação automática, impensada, como se estivéssemos sempre prontos para apontar o erro do outro, como se os segundos de atraso do motorista à frente fossem uma ofensa pessoal à nossa existência.


Essa postura é reveladora. Quando reagimos com fúria a pequenos incômodos, o que está se manifestando não é a racionalidade, mas o nosso sistema emocional mais primitivo. Daniel Kahneman, psicólogo e prêmio Nobel de Economia, nos ajuda a entender esse fenômeno ao descrever os dois sistemas que regem nossa mente. O Sistema 1 é rápido, automático, instintivo e emocional. É ele quem nos faz buzinar sem pensar, levantar a voz, bater a porta. Já o Sistema 2 é lento, deliberado, analítico. É o que nos permite refletir, avaliar, respirar antes de agir. O problema é que vivemos em um mundo que estimula respostas rápidas e, por isso, ficamos presos ao Sistema 1. Reagimos como se estivéssemos constantemente sob ataque, e qualquer obstáculo vira ameaça. No trânsito, isso é literal: a presença de um outro que freia, que erra, que hesita, parece intolerável. Mas a verdade é que o outro não está lá para nos servir — ele está apenas vivendo sua própria versão da realidade, com seus próprios limites, distrações e desafios.


Apesar de agirmos muitas vezes com base nesse piloto automático emocional, isso não nos exime de responsabilidade. A impulsividade não é desculpa. Ela é uma tendência biológica, sim, mas que pode ser educada, adestrada, treinada. A neurociência já demonstrou que o cérebro é plástico — ele se transforma com a repetição, com o esforço consciente, com a pausa entre o estímulo e a resposta. Agir com mais empatia, com mais ponderação, não é algo que nasce pronto; é um hábito que se constrói. E essa construção começa no detalhe. Começa com a escolha, quase invisível, de não buzinar quando não há perigo. Parece pouco, mas não é. Porque uma sociedade se forma exatamente nesses pequenos gestos — e nas emoções que eles alimentam.


De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o Brasil registra mais de 30 mil mortes por ano no trânsito. A maioria não ocorre por falha mecânica, mas por comportamento humano. São vidas perdidas por impaciência, por orgulho, por excesso de raiva mal canalizada. É assustador pensar que, entre a vida e a morte, às vezes há apenas o tempo de uma freada — ou de um ataque emocional. Mas mais assustador ainda é perceber como naturalizamos essa cultura da agressividade. Buzinar virou hábito. Xingamentos, regra. Fechar o outro, algo corriqueiro. E o mais grave: reproduzimos isso nos ambientes que frequentamos. Quem se acostuma a agir com hostilidade no trânsito, tende a levar essa mesma energia para casa, para o trabalho, para o mundo. A forma como nos comportamos quando achamos que ninguém está vendo é, muitas vezes, a nossa forma mais autêntica de ser.


Essa cadeia de reatividade se espalha como um vírus. Alguém buzina em excesso e agride com o som. A pessoa agredida chega irritada ao trabalho. Desconta no colega. O colega, pressionado, se exalta com o cliente. O cliente volta para casa e é ríspido com a família. A criança assiste e aprende. No dia seguinte, essa criança será mais um elo de uma cultura que reage antes de compreender. A intolerância se replica sem que percebamos — porque ela é invisível quando está no hábito.


É por isso que a chamada "lei do retorno" não é esotérica. É mecânica. Nossos gestos moldam o ambiente à nossa volta. Se promovemos impaciência, ela retorna multiplicada. Se cultivamos empatia, ela nos envolve de volta. Não se trata de crença, mas de lógica relacional. O mundo reage ao que oferecemos — e cada microdecisão contribui para o tom que esse mundo terá.


Talvez tudo isso pareça exagero por causa de uma simples buzina. Mas não é. Porque o que fazemos quando achamos que não importa, revela exatamente quem somos quando mais importa. Somos um espelho de nossos pequenos atos. E se queremos transformar a cultura, temos que começar por eles. Não há mudança coletiva sem a escolha pessoal de agir diferente. Escolher o silêncio em vez da buzina. A pausa em vez da fúria. O benefício da dúvida em vez do julgamento imediato. A responsabilidade emocional não é uma utopia: é a única saída viável para uma convivência mais humana, justa e segura.


A buzina é pequena. Mas o que ela revela sobre nós pode ser imenso.

 
 
 

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